Se começar por vos dizer; Eu nunca me achei bonita, muitos não irão acreditar. Como não? Tiras fotografias diariamente, tens a tua cara em todo o lado, e dizes-me que não te achas bonita?
Vamos recuar no tempo. Temos de recuar, para, muito resumidamente, vos pôr a par e, juntas, percebermos o porquê das coisas.
Desde muito cedo me apercebi que o que eu via ao espelho não correspondia com o que eu sentia. Via-me de forma disforme e toldada por um certo medo de não perceber porque me via assim. Enquanto criança, isto sempre fez de mim muito consciente da minha imagem corporal, e dei comigo aos 9 anos de idade a apenas não querer comer. Eu era gordinha, ou a palavra que quiserem inserir, era roliça e saudável mas era extremamente infeliz. Não queria ir à escola, recusava-me a ir à escola e no 5º ano, lembro-me de ter faltado imenso e de ter começado a fazer terapia. Fiquei muito magra (porque não comia) e fui diagnosticada com Anorexia Nervosa.
Não poderei culpar a escola, os meus colegas ou qualquer outra entidade. A nossa educação tem de nos preparar para a vida exterior, e os meus pais, os melhores do mundo, deram-me tudo e eu, mesmo assim, não tinha auto-estima para combater o terror de existir aos 12 anos. A mais pura das verdades é que com 12 anos somos “cruéis” porque dizemos tudo sem pensar se estamos a magoar ou a traumatizar alguém. As alcunhas eram inúmeras e a rejeição dos rapazes era óbvia, comparada com o restante gang feminino e dito “magro”. Não só era gozada por ser gordinha, como por ser “lisa”,  tinha a alcunha mama lisa, e não só era gozada também por isso como por faltar todas as tardes de um certo dia da semana porque me andava “a tratar no psicólogo”. Aos 13 decidi que queria começar a fazer exercício, emagrecer e “ser” magra. Já bastava de não me sentir aceite, confiante ou bonita e isso iria acabar ali! Aos 14 dei entrada em Santa Maria com 37,5kg. Foi o meu peso mais baixo. Contava cada caloria do que comia, era um esqueleto vivo e, jamais, me permitiria a ser gorda outra vez. Estava tudo controlado na minha cabeça. Se estiver magra, estou bem. (Uma mente delirante no seu melhor)
Fiquei a ser seguida durante um ano inteiro em Santa Maria, éramos pesadas semanalmente, tínhamos psicólogo, psiquiatra, endocrinologista e médica de nutrição/dieta onde tínhamos de apontar tudo o que comíamos. A minha Anorexia Nervosa, desta vez era muito real para mim. Desta vez sim, era um Distúrbio Alimentar, todo o meu corpo o sabia e negava.
Neguei até ser ameaçada semanas a fio de ser internada na ala de psiquiatria, neguei até ver companheiras de doença morrerem e não estarem mais, ali, comigo, a partilhar o que tinham arquitectado para pôr na roupa e esconder no corpo para aparentarem ter mais peso na pesagem da semana. Nos anos 90 isto era mesmo assim, estilo aviário, tudo muito descomplicado e radical.
Após 1 ano em Santa Maria, com a equipa do Dr. Daniel Sampaio, e já com 15 anos, mudo de escola. Entro no Liceu, e sinto que o mudar de escola foi o mudar de vida. Eu estava a renascer, estava a poder recomeçar de novo, magra, ainda com consultas de psicologia e psiquiatria fora do hospital, mas magra e já saudável. Aqui, os rapazes olhavam para mim e as raparigas queriam ser minhas amigas. E eu associei sempre o ser magra ao ser aceite. Em adulta, sei que na verdade era o eu aceitar-me que me permitia que os outros também me aceitassem. Mas em criança, esse discernimento era nulo.
A minha vida alimentar ficou estagnada e bem até aos 19 anos. Durante este período de tempo, não me lembro de ter tido qualquer episódio de recaída. Mas aos 19, e já sem acompanhamento, dou comigo a ganhar 4 ou 5 kilos e a reviver traumas na minha cabeça dias a fio. Foi um gatilho descontrolado e que entrou e destruiu o trabalho de anos. Iria tudo voltar? Não pode. Não pode. Não sei como começou, ou sequer quando foi a primeira vez que forcei o vómito, mas aos 19 anos, eu tinha uma Bulimia avançada e pelo menos metade do que comia, não ficava no meu corpo. A Bulimia durou ainda alguns largos anos… Mais do que aqueles que vos gostava de confessar, e a minha ajuda só veio quando uma tarde na Revista Visão, li um artigo com a Dra. Ana Vasconcelos onde ela dizia qualquer coisa como “Uma rapariga com Distúrbios Alimentares não é uma menina vaidosa a querer emagrecer, mas uma alma que está a chorar”. Caiu-me tudo no momento, o mundo parou, senti arrepios de electricidade em cada membro do meu corpo, e gritei e chorei e soube; Era ela que me ia salvar. E foi. Era, é, pedopsiquiatra, o que pressupõe que após os 18 anos já não me receberia, mas recebeu.
Posso afirmar com convicção, que a sua voz com sotaque francês, a sua calma e o seu humor, me abriram as portas da minha mente e me ensinaram a reconhecer e aceitar que ser diferente é bom, que sentir tudo em demasia é bom e que sofrer também o é. Aprendi a aceitar-me, a aceitar que seria sempre assim, obcecada com a minha imagem, e que mesmo assim, poderia viver feliz. Porque a diferença torna-nos únicos.
Acho que durante os meus 20’s aprendi que o que via ao espelho não era a realidade. Aceitei que nunca me iria ver como magra e que o espelho me mostraria sempre uma pessoa disforme. A única maneira que eu tinha de perceber como era, era através de fotografias. Não havia máquinas digitais, mas desde muito nova que revelava rolos semanalmente e fazia shootings no quarto, na rua, com diferentes roupas e acessórios. Trouxe isso até à minha vida adulta. O espelho será sempre o evil twin. Tiro fotos, e nelas, vejo-me como sou, nem sempre gosto, mas sei que sou eu, sei que são a cópia gémea e real da minha pessoa.
É muito complicado perceber porque aos 35 anos tudo voltou. Agora, a minha relação com a comida é do mais nocivo que há, comer é um sacrifício e quanto menos como, menos comida o meu estômago aceita. Começou com uma gastrite que nunca ficou completamente curada. As dores de estômago são uma constante e apesar de ter corrido inúmeras especialidades médicas, ninguém me aponta uma doença e juram (!!) que não tenho um Distúrbio Alimentar, que desta vez é só ansiedade. E pode muito bem ser verdade, eu alimento-me de açúcar basicamente, recuso-me a ingerir qualquer coisa que não goste e só me alimento para sobreviver. Deixei de fazer vida social, não vou a restaurantes, jantares de família, aniversários, nada. Recuso-me a sentar num restaurante com comida à volta, é uma explosão de ansiedade e desconforto. Gosto de comer pouco e sozinha. Não sei lidar com a comida, mas muitas vezes pergunto aos meus a sorrir “diz-me tudo o que comeste ao almoço, deixa-me comer através de ti e não ter dor”.
Já aceitei que talvez nunca, jamais, terei uma relação saudável com a comida. Mesmo tendo um bom metabolismo, até sabendo que seria na mesma magra mesmo se comesse como uma mulher saudável. A mente não coopera comigo, a vida não coopera comigo e dei comigo a perceber que a ansiedade é mesmo, neste momento, a minha maior inimiga.
Em Setembro vou inscrever-me novamente num ginásio e tirar um curso de meditação. Se eu cansar muito o corpo e relaxar muito a mente, talvez o organismo me peça gentilmente alimento e eu dê comigo a comer, sem fazer uma triagem obsessiva do processo e, talvez, que sonho!, me encontre a gostar de o fazer. Gostar de comer, ter realmente prazer nisso e voltar a acreditar.
Escrevo-vos isto, são 14.06h do dia 29 de Julho e acabei de almoçar 2 Bledinas. Estou que morro de fome, mas o peso da fome é mais tolerável que o peso da comida no estômago e as dores e desconforto atrozes que isso me dá.

Falando agora diretamente num diálogo tu e eu: Se me segues há 3 dias, 5 meses, 10 anos.. Percebe isto; Nenhuma vida é perfeita por mais que o aparente ser. Ninguém te vai salvar e dizer que vai ficar tudo bem, essa força tem de nascer, acordar e viver em ti. Um dia, mais cedo ou mais tarde, vai acontecer, tem de acontecer. Não faz sentido vivermos em liberdade e sentirmo-nos tão presos. Não faz sentido existir se não for para viver os dias de sol, comer um gelado ao fim da tarde e dar e receber amor. E para conseguir dar aos outros, temos primeiro de o saber dar a nós. E eu estou nesse processo bonito de cuidar de mim, de me afastar do que me faz mal, de descobrir as causas das minhas dores e de apenas não dar relevância ao irrelevante. Porque na verdade, 80% dos meus problemas são irrelevantes, 90% das pessoas que me fazem mal são irrelevantes e perdoar não é, para mim, a melhor virtude, mas sim o deixar ir e esquecer, por completo, e sem rancor.

Todas as rosas têm espinhos. Se eu fosse uma rosa, estes, seriam os meus.

Se tens alguém próximo que achas que está a passar por algum tipo de Distúrbio Alimentar, tem em conta conselhos de quem passou por isso toda uma vida.

  1. Não abordes a questão comida, não ofereças comida mais que uma vez, não forces o assunto, isso só piora.
  2. Não comentes se está mais magra ou mais “saudável” porque o estar mais magra é estares a apontar que está doente e o estar “saudável” é sinal que engordou e é só isso que vai assimilar. Só.
  3. Se queres elogiar, faz elogios não alusivos à imagem corporal. Elogia o casaco, os sapatos, o penteado.
  4. A ajuda profissional é fundamental, mas, muitas vezes, um bom amigo é a razão que nos leva a acreditar que vale a pena existir. Se o melhor que podes dar é a tua amizade, dá. Não há dor que um bom abraço não acalme, não há grito que um sorriso não abafe.

Obrigada por terem chegado até ao fim deste testemunho. Sei que foi longo e, para muitos, chocante. Estou acessível através do meu email e DM no Instagram para qualquer questão que alguma de vocês tenha, caso estejas a passar por algo semelhante. Obrigada por estarem aqui.

Como reza a tradição e porque este post não é excepção: Kimono Vintage/ Fio Monique CINCO