Este texto vai parecer um pouco estranho para alguns. Eu vou descrever episódios e situações com que, provavelmente, a maioria não se vai identificar, ou talvez sim. Somos todos tão peculiares e com uma ampla e vasta variedade de características que nos tornam diferentes, mas iguais.

Eu crio ligações emocionais com os meus objectos pessoais. A primeira memória que tenho disto foi quando os meus pais trocaram de carro. Eu tinha cinco anos de idade. Os meus pais puderam finalmente comprar um bom carro e entregar o antigo, o único que eu conhecia desde sempre. Os meus pais contam-me sempre esta história como se eu não me lembrasse dela, mas eu lembro-me de tudo como se fosse agora. Sentada no banco de trás do Renault 5 vermelho a chorar, a fazer festas nos bancos e a dizer “não, não, não quero, por favor”. E os meus pais, coitados, sempre com muita paciência comigo (sempre…!!) a explicarem-me “mas filhota, este novo é maior, e melhor e anda mais depressa”. Mas nada me cativava no carro novo. O “velho” era o meu. E lá fiquei eu, a chorar, agarrada ao banco da frente, a agradecer aos bancos e às janelas pelos passeios e a falar com o carro. Até que eventualmente, os meus pais e o senhor do stand me tiraram ao colo e do resto não me lembro. Provavelmente adormeci de cansaço.

Neste fim de semana, no sábado de manhã, apesar de andar a adiar há uns três meses, lá decidi ir, finalmente, comprar um Iphone novo. E é aqui que as duas histórias se cruzam, tendo havido, obviamente, muitas outras durante os anos que as separam (se quiserem mais capítulos, escrevo-os com prazer).

Sabia que tinha de entregar o meu iPhone para retoma, ainda valia mais de 300€ e, num aparelho do valor que é um iPhone Pro Max 14… Percebemos que é o passo lógico. Mas eu nunca tinha feito isto. Eu guardo sempre os meus iPhones e telemóveis desde o início dos tempos. Guardo-os, não sei. Com a roupa sou desapegada; vendo, nem penso. Com um telemóvel, especialmente desde que são smartphones, a coisa mudou. O meu telefone é o meu companheiro. Está comigo sempre. É lá que aponto os meus pensamentos nas notas, que tiro fotografias para o Instagram e para memórias enquanto caminho e vejo uma flor ou um pôr do sol. É nele que vejo vídeos no youtube. Foi com aquele telefone que passei um isolamento em lágrimas. Ele conhece-me, e, agora,  já não sei onde está.

Ver duas pessoas a tocarem-lhe, a tentarem durante mais de quatro horas passar os dados para o novo, e sem sucesso, o retirar  película de proteção, o partirem a película à minha frente, o telefone a passar de mão em mão. Eu tenho noção que eu sou a inadaptada. Verguei. Tive uma crise de choro, um ataque de pânico em plena rua. Fechei-me no carro. O rapaz da loja veio atrás de mim. Conversei entre soluços, tentei tornar o irracional em algo explicável. Ele perguntou se me podia abraçar.

No dia seguinte o Hugo voltou lá com o meu telefone para o mesmo exorcismo. Eu já não conseguia. Quando chegou a casa, eu não peguei no iPhone novo por umas cinco horas. Até que o Hugo me disse “vá lá gira, o outro estava a dar-te problemas… e este não te fez mal nenhum, olha ele ali abandonado”. E eu abri a caixa. Vou ser sempre a Joana de cinco anos. Criatura de hábitos, apegada às suas coisas. Estimo-as, no mínimo tenho isso em minha defesa. Num mundo onde tudo é descartável, eu recuso-me a aceitar que as coisas que nos acompanham não acabam por ser, também, parte de nós e a partilhar a nossa energia.

Obviamente que eu sei que daqui a uns dias o meu novo brinquedo vai ser a melhor coisa que me aconteceu. Mas eu há muito tempo que me permiti ser eu. E esta minha liberdade traz, talvez, consigo estigmas. Mas, surpreendentemente, a humanidade encontra-se nos lugares mais inesperados. Porque não há nada mais bonito que a verdade e não há nada mais bonito que o amor. E, no fim, com os dois, tudo acaba, termina e fica bem.

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