Na publicação da semana passada, falei-vos desta crise existencial que se apoderou de mim este outono. Nunca costuma ser nesta altura. Vem sempre, todos os anos, mas normalmente é em fevereiro, já com a saturação dos dias de frio e céus repletos de nuvens. É como uma velha amiga que me visita em pleno inverno e faz questão de apontar todos os meus defeitos e fraquezas, como se isso lhe fosse prazeroso, pois é somente essa a sua missão.

Desta vez, a amiga não é a mesma. Eu não duvido de mim, não me deparo com problemas de autoestima e propósito. Estou firme e segura que estou no lugar certo, na altura certa e a fazer o que mais gosto.

Esta amiga é mais antiga. Cresceu comigo e vivia em minha casa. Brincou comigo e, juntas, passámos a infância e a adolescência a desbravar a minha emancipação anos adentro. Ela conhece-me bem, mas eu conheço-a melhor. A sua voz, que me vem em pensamentos intrusivos, já não me afecta da mesma forma. Já não me tira o sono, mas ainda me tira a paz.

Está sempre ali, mesmo que a mande calar, a lembrar-me que podemos sempre, juntas, voltar a caminhar para o precipício.

De tanto me recusar a comer, quando o faço, tenho dores de estômago inimagináveis. Faço-o sempre em pequenas doses e só como o que gosto. Não consigo levar à boca algo que seja um gatilho para os tempos da Anorexia, tal como não consigo consumir comida altamente processada que me remota para os tempos da Bulimia.

Vivo num limbo onde os meus alimentos seguros se deslocam comigo em cada quatro passos que dou. Mas esta disciplina tem quebras, acusa desgaste e, no início do outono, vi-me a vergar perante tanta obediência cega.

Este texto não é escrito por uma vítima, preciso reforçar este sopro de verdade; não sou uma vítima. Sou uma pessoa armada física e mentalmente, sou uma gladiadora que entretem diariamente enquanto luta e continua a vencer.

Antes parecia que ela me visitava menos vezes, muito menos.  Mesmo na altura da blogosfera, lembro-me de ter passado uns quatro ou cinco anos sem a “ouvir”.  Sei que é um dilema para a vida e, acima de tudo, sei que é uma batalha solitária que tantas travamos no silêncio do embaraço que é existir-se assim.

Mas nem todos os dias são iguais, nem é possível haver só rubor à nossa volta. Tenho, corrijo, temos de nos agarrar aos dias menos maus e torná-los fantásticos.

Prefiro saber-vos certas que sou assim: com falhas, imperfeita, humana, repleta de sonhos e medos. Com batalhas diárias e longe de ser a boneca padrão que as redes sociais nos impingem diariamente. É fácil sentir que somos as mais feias, as menos viajadas e as com o menor grupo de amigas e festas. É tão fácil, que acabamos por nos esquecer que nunca quisemos ser as mais bonitas, as mais viajadas, nem as que estão sempre em festas. Mas os media vão fazer-nos sentir isso.

É urgente, mais do que nunca na história da humanidade, saber o que fazemos aqui. Porque nascemos? Para quê? Qual é o nosso propósito?

Hoje vou escrever uma carta para a Joana de 2026, para ela ler no dia 1 de janeiro. Vou enchê-la de certezas e fechá-la numa gaveta. Ainda não a escrevi e já sei que vou chorar.

Este blogue tornou-se um diário, um confessionário, uma libertação. Obrigada por me aceitarem como sou. Convosco, cresço e tenho força. Convosco sou mesmo mais forte, porque o amor é o derradeiro vencedor, sempre.

 

(fotografia de capa Rouje)

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