“Acho que nunca fui feia. Mas quase sempre me senti assim.” Quer dizer, os meus pais talvez dirão “tiveste uma fase menos bonita, mas é normal”. E eu, com toda a certeza, durante o meu crescimento nunca me senti à altura dos padrões de beleza que idealizava.
Primeiro era gordinha, depois a minha mãe cortava-me o cabelo constantemente. Certo dia, (quem nunca teve piolhos nos 80’s), dou comigo de cabelo à rapaz e lágrimas até aos joelhos. Como pudeste mãe, fazer-me isto? Não sabes que as princesas têm cabelos longos, ondulados e cor de mel? A minha dor não tinha fim. Lembro-me de uma foto de escola, aquelas que se tiravam no Natal e afins, em que estou a fazer cara de amuo e, onde era notório o meu desapontamento para comigo. Acho que foi aqui, sem a minha mãe sonhar, que comecei a olhar-me ao espelho e a achar-me mesmo feia. Sentia-me um pequeno rapaz, a irmã renegada da Cinderela e, sentia-me essencialmente triste.

Com esta tristeza cresceu, a passos largos, uma verdadeira vontade de me isolar. Não queria ir à escola, queria ficar sozinha no meu mundo a brincar e, deixei de querer comer. Para se situarem no tempo, eu tinha 9 anos. E, com 9 anos, eu não queria viver. Lembro-me, como se fosse hoje, de estar sentada na cama, de manhã, e pensar que não fazia sentido. Nada fazia sentido. Não fazia sentido isto de não pertencer verdadeiramente a nada. Nada me dava prazer. As idas à escola eram um tormento. Era gozada, tinha poucos amigos e não conseguia tirar proveito das aulas nem de aprender. Comecei a faltar imenso, o corpo pedia-me casa e eu ficava fechada, sozinha, enquanto os meus pais iam trabalhar.
Com estas faltas às aulas e uma alimentação forçada (e subornada com brinquedos) à base de papas, os meus pais arranjaram-me um psicólogo.
Fui diagnosticada, aos 9, com Anorexia Nervosa. Eu não sou médica, talvez é coisa que nunca vá mesmo ser, mas eu própria sabia que não era isso. Na altura, esta doença estava a começar a ser falada e, apesar de não haver o Google, a informação existia e eu sabia que não era isso que eu tinha.
Tinha, o que terei sempre, questões infinitas do porquê de sentir sempre tanto tudo, a um nível que me consumia a energia e me deixava de cama, tantas vezes, mesmo agora na vida adulta.

A minha relação com a comida ficou marcada para sempre. Passei a apenas comer aquele prato de papa se a seguir tivesse o brinquedo X. Tinha recompensas se me alimentasse e isso às vezes motivava-me, mas nem sempre.
Aos 14, foi derradeiro e certo. Aqui, sim, era Anorexia Nervosa. Eu contava calorias, eu fazia de tudo para emagrecer. Desde convencer os meus pais a comprarem-me uma daquelas bicicletas horrorosas com um design 90’s que matou todo o glam do meu quarto. Mas, tudo por um corpo magro. Além de horas de bicicleta, subia e descia as escadas do meu prédio vezes sem fim. Isto tudo aconteceu no Verão de 1995 e os meus dias existiam para esta luta de alcançar o corpo perfeito, a imagem perfeita e eu, finalmente gostar de mim. Estive um ano em Santa Maria a ser tratada com a Equipa do Dr. Daniel Sampaio. Neste ano perdi colegas de doença, e cresci como cresce quem olha o terror da morte nos olhos. Porque saber que temos algo que nos pode matar, não é assustador, é franco e visceral.  O meu peso mínimo foi 37,5kg e as ameaças de internamento eram constantes. A sentirem já o peso de tudo? Vamos abrandar. Eu fiquei bem! Um dia, ao sair do Hospital, olhei para a minha mãe e disse-lhe: Hoje quero almôndegas e puré para o jantar. E sempre que vejo na TV, num livro de receita ou numa mesa ao meu lado um prato de almôndegas, penso, hello old friend.
Tudo mudou verdadeiramente. Aos 15 anos eu estava curada, continuei sempre com acompanhamento psiquiátrico mas estava curada. Era magra, sentia-me saudável e bem, entrei no Liceu e tinha uma casa cheia de amigos. (se leram o capítulo II, percebem a importância do Liceu para mim)

Com o fim do Liceu e com a entrada na Faculdade as fobias, os medos e o pânico de engordar voltaram todas juntas para se apoderar de mim. E lá estava eu, com 19 anos e uma Bulimia como melhor amiga.
Acreditem que estas “coisas”, estas maldades, tornam-se parte de nós, são o nosso segredo e, são também, a nossa zona de conforto, a nossa zona de controlo.

Nunca fiquei curada a 100%. Acho que quem passa por uma Bulimia carrega consigo a Bulimia, esta faz parte de si. Por mais que a afastemos, ela volta e aconchega e repele. E repele porque nos faz sentir fracas e se há coisa que eu sei que não sou é fraca. Sou capaz de passar meses e meses sem forçar o vómito. Mas, às vezes, ao fim quase de um ano de distância, acontece.  Aprendemos a tratar certas coisas por tu. Olhamos a doença e sabemos que está lá, que existe atrás de nós, mas que nunca é um todo. Nunca fui anoréxica e nunca fui bulímica. Nunca somos a nossa doença. Podemos tê-la, mas nunca a somos.

Passados tantos anos, “plena” adulta e consciente de toda uma vida dominada pela comida, tenho pela mesma um ódio que só se tem pelo que nos atravessa e destrói.
Porque não consigo viver e olhar a comida como todos os meus amigos o fazem? Porque não consigo eu aproveitar um banquete, um jantar de celebração, uma mesa de Natal? Todos estes exemplos, enquanto os escrevo, fazem de mim uma criança pequena. Sou pequena, tenho 4 anos e choro. Sou pequena, tenho 38 anos e choro.

Estou há dois anos num regime alimentar para lá de idóneo. Não faço uma refeição de prato há tanto tempo,  não como comida “normal” há tanto tempo, que, quando o faço (a pedido de alguém) o meu corpo leva-me para a cama 3 dias. As dores de estômago são excruciantes e a comida é o meu inimigo número um. Cheguei a pensar que era eu. Mas hoje sei que não o sou. É a comida, e é também quem me obriga e força a comer, ficando eu em ruínas. Porque fico mesmo. E a troco de quê?

Neste momento, estou em dores há 16h, mal dormi, tudo porque tentei comer algo que me fizeram. Peço-vos desculpa pela minha franqueza, mas se o mundo não está preparado para quem tem medo de comer, eu  não estou preparada para fingir que me importo.  Ao fim do dia, sou eu que tenho de carregar comigo o peso de um estômago embrulhado e as frases gravadas de “mas então, isso ainda anda assim”.

Endoscopias? Duas. Problemas de estômago actuais: Zero. Problemas com as pessoas? Inumerável. “O inferno são os outros” sempre foi uma frase que me definiu. Eu estou farta dos outros, talvez um bocadinho também de mim, mas essencialmente dos outros.  Não ponho a culpa da minha condição em ninguém, só gostava que não me obrigassem a ser igual.  Porque eu nunca vou ser a rapariga com 5 panquecas e um batido de morango xxl a sorrir. Há tanta coisa que eu nunca vou ser e que (já) não o quero ser. Não me acrescenta, não me completa, não me define.

Temos mesmo todos de delirar com a comida… Posso eu delirar com a música e a poesia? Poderão esses ser os meus alimentos?

Poderá este mundo aceitar-me?

Acordei cansada. A vida pesa-me mas o corpo emagrece. Desta vez, eu não quero ser a rapariga magra. Sou magra há demasiado tempo. Eu só quero ser a rapariga. Eu, com todos os meus defeitos,  diferenças e distopia inegáveis.
“Acho que nunca fui feia. Mas quase sempre me senti assim”,  acho que nunca fui triste, mas quase sempre me senti assim.

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