Enquanto me formava em pequena mulher, sonhava prosseguir uma carreira no mundo da literatura. Imaginava-me a dedicar os meus dias e o meu tempo à procura de património nacional. Por isto quero eu dizer, mais heterónimos de Fernando Pessoa. Passava tardes na sua casa (aberta ao público), corria textos e fotocopiava páginas e páginas que levava comigo para depois, no meu quarto, ler. Numa destas vezes, descobri a Maria José. E a minha vida mudou um bocadinho ali. Era um heterónimo feminino, 19 anos, corcunda de nascença, vítima de tuberculose e que deixava uma carta ao seu amado. “… e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor”.
Aconselho a todas a lerem a Carta da Corcunda para o Serralheiro.  Neste momento, eu tinha 17 anos e era exactamente como a amante do Serralheiro era descrita por Maria José. Eu tinha a saúde, as pernas para alcançar os meus sonhos e as mãos para os prender a mim.
Lembro-me de me ter fechado a chorar. A carta foi-me mesmo muito intensa.  Uma forte metáfora que me havia sido posta em mãos pelas próprias mãos do destino. Isto não podia ser obra do acaso. Ali estava, a realidade de eu poder ser tudo, poder ter tudo e de, todos os dias, quebrar os meus sonhos e os meus desejos por medos e estigmas de não ser suficiente. Sou suficiente Maria José. Vou sê-lo pelas duas!

Acabei o Liceu e Licenciei-me em Línguas. Sabia que a Literatura seria um caminho que tinha de percorrer sozinha. Sem colegas conhecidos, nova cidade, novas caras, mas a mesma sede, chamada poesia. 

Incrível não ter seguido este caminho por mais que uns 6 ou 7 anos. Dei explicações durante muito tempo, trabalhei em tradução mas, como há sempre um grande mas, a fotografia era uma sombra que precisava de apanhar Sol. E, assim sendo, tirei um curso de Fotografia enquanto dava explicações. Nunca cheguei a realizar O sonho inicial, mas trago comigo, todos os dias, palavras do Fernando Pessoa tatuadas em mim. 

“Fui, como ervas, e não me arrancaram.”

Por ser extremamente visual e orientada pela estética, a fotografia foi o meu caminho derradeiro. Trabalhei 8 anos como fotógrafa de crianças numa agência de modelos infantis. E, já aqui, criei o Blog e iniciei-me no que seria um registo diário, consistente e regrado do meu quotidiano em coordenados.
Em 11 anos de Blog, a quantidade de imagens é avassaladora e maravilhosa. Com a sua gravação permanente em imagem visual, consigo reter emoções e lembranças precisas dos dias, das horas, e dos momentos à frente e atrás da camera.

Mas vamos voltar à Carta da Corcunda para o Serralheiro, e eu com 17 anos nos subúrbios de Lisboa. Nesta altura eu vivia o pico da minha vida. Sei que é cliché detestar-se o Liceu, mas eu amei-o de morte!

O Liceu foi o melhor dos tempos. Para trás ficou o Ciclo e 5 anos de Anorexia Nervosa. Durante o 2º e o 3º ciclo o meu corpo foi cheio, cheiinho, gordinho, magro, muito magro, escanzelado e todas as formas a que tive direito sem ter mão. Mas agora, agora com 15 anos, a Anorexia estava controlada, o meu corpo era saudável e magro e a vida parecia mais leve. Mudar de escola foi exactamente como mudar de vida. E como eu gostava desta nova vida!! Aqui, os rapazes olhavam para mim! Parece super desnecessário de mencionar, mas eu não sabia, até então, o que era isto da atenção positiva pelo sexo oposto. E como me deixava vaidosa e radiante esta cortesia. 

Aos 15 anos, namorava com o rapaz mais giro do Liceu e tinha, finalmente, o corpo que o meu cérebro dizia ser o meu. E o espelho já não era meu inimigo.

Comecei, novamente a gostar de me vestir, de me produzir mesmo. Já era, completamente, toda uma pequena produção. Levar roupa na mochila e mudar as calças para uma minissaia para o pai não ver. Pintar o cabelo de ruivo como a Shirley Manson e, ouvir muito rock, porque a energia corria nas veias como só corre como quando temos 15 anos e sabemos que se quisermos com a força certa, tudo é possível.
Entre os 15 e os 18 fui uma pessoa extremamente realizada. Estudei os meus escritores preferidos, tinha prazer em ir às aulas, em escrever, em estar com os meu amigos no intervalo, em passar as tardes a falar e a ouvir música, a fazer sessões fotográficas com amigas e a conversar sobre a humanidade, o Universo e o Planeta. Acho que foram estes os anos que me moldaram enquanto pessoa. Sentia-me tão feliz que tudo o que sonhava e imaginava era o suficiente para, de facto, acontecer.

Não me perguntem como, mas aos 19, tudo voltou. Voltou a escuridão. O meu eu interior sabe que foi o ter deixado o Liceu. Mas na prática sabemos que é impossível parar o tempo, congelar as horas e viver eternamente numa Era, numa época, num momento.

A Universidade trouxe-me uma Bulimia, uma juventude carregada de ansiolíticos e uma solidão constante. Já não sabia, outra vez, onde pertencia. Aqui, percebi que seria novamente sozinha, sozinha numa sala cheia. E nunca mais deixei a terapia. 

Acho que nunca fui feia. Mas quase sempre me senti assim.

Obrigada ao Liceu Miguel Torga, pelos melhores anos da minha vida.

Ilustrações da artista Alemã Ani Cinski